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Por que Deus parece tão zangado no Antigo Testamento e amoroso no Novo Testamento?

Algumas pessoas quando leem o Antigo Testamento, ficam com a impressão de que Deus é um Deus de ira e julgamento, mas quando chegam ao Novo Testamento, encontram um Deus de amor. Essa questão incomoda alguns cristãos há muito tempo. No período dos pais da Igreja, Marcião (85-160 d.C) levantou essa questão e sugeriu que o Deus criador do Antigo Testamento era um ser inferior ao Deus e Pai de Jesus Cristo. Por essa razão, ele começou a remover do Novo Testamento toda influência desse Deus criador. Ele criou uma lista própria de livros sagrados segundo a sua visão, excluindo por exemplo, o Evangelho de Mateus e adotou uma versão abreviada do Evangelho de Lucas como o único Evangelho inspirado. A resposta da Igreja para combater as heresias de Marcião foi rejeitar os seus ensinos, excluí-lo da comunhão e  formalizar a lista dos livros inspirados, isto é,  estabelecer o Cânon Sagrado que deveria ser usado pelos cristãos. No entanto, a questão levantada por Marcião ainda incomoda algumas pessoas em pleno século XXI.

A realidade é que não há diferença entre o Deus do Antigo e do Novo Testamento. O apóstolo João aponta esta verdade ao declarar: “Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o fez conhecer” (Jo 1:18). João de fato está dizendo que Jesus está manifestando exatamente o caráter de seu Pai, o Deus do Antigo Testamento. Nas palavras do próprio Jesus temos a expressão: “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14:9). Jesus é a revelação de Deus. Não há diferença entre eles no caráter; encontrar um deles é conhecer os dois. Assim, Jesus não é mais amoroso do que seu Pai. O Pai não é mais julgador do que Jesus. Todos os escritores do Novo Testamento veem uma continuidade entre o Deus do Antigo Testamento e o Deus que eles experimentaram por meio de Cristo.

Há três pontos que devem ser considerados para esclarecer esta declaração:

  1. há amor no Antigo Testamento;
  2. há julgamento no Novo Testamento;
  3. a principal diferença reside no julgamento dentro da história e no julgamento no final da história.

Em primeiro lugar, existe amor no Antigo Testamento. Deus se manifesta ao seu povo como o Deus de amor antes de se apresentar como aquele que julga com justiça. Por exemplo, em Êxodo 34:6-7 está escrito:

Passando, pois, o Senhor perante a sua face, clamou: Jeová, o Senhor, Deus misericordioso e piedoso, tardio em iras e grande em beneficência e verdade; que guarda a beneficência em milhares; que perdoa a iniquidade, e a transgressão, e o pecado; que ao culpado não tem por inocente; que visita a iniquidade dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos até à terceira e quarta geração.

Êxodo 34.6,7

Esta é a apresentação fundamental de Deus a Moisés. Observe como ele primeiro declara sua compaixão, graça, amor, fidelidade e perdão. Entretanto, não se deve abusar de sua bondade, pois aqueles que não respondem ao seu amor, serão julgados. Ele é amoroso, mas não é um pai indulgente. Ele trará justiça.

Em todo o Antigo Testamento, Deus continuamente diz que escolheu Israel por amor, não porque este povo fosse merecedor. Quando Israel se rebela, ele estende a mão por meio de profetas. Quando eles continuam a se rebelar, ele os adverte e envia o julgamento, no entanto, no meio desse processo há mensagens como as registradas pelo profeta Oséias 11:8, “Como posso desistir de você?” Deus está angustiado com a situação. Por um lado, a justiça exige que ele aja julgando. Por outro lado, seu coração amoroso está partido por causa de seu povo e ele não consegue suportar vê-los feridos e destruídos. No livro de Oséias Deus é retratado como o marido de uma esposa adúltera. O que ele quer fazer é pegá-la nos braços, mas não pode ignorar o seu comportamento desprezível. Sua vontade diretiva não é um julgamento final, mas um julgamento que fará com que o coração dela volte para ele para que possa restaurá-la à sua “família”.

Deus não age de forma amorosa apenas com Israel, com seu povo escolhido. O autor do livro do profeta Jonas registrou a oração do profeta:  

E orou ao Senhor e disse: Ah! Senhor! Não foi isso o que eu disse, estando ainda na minha terra? Por isso, me preveni, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus piedoso e misericordioso, longânimo e grande em benignidade e que te arrependes do mal. 

Jonas 4.2

Jonas está infeliz com a graça de Deus para com Nínive. Ele estava aparentemente muito feliz em anunciar que em quarenta dias Nínive seria destruída, mas quando eles se arrependeram e Deus os perdoou, ele ficou chateado. Esta atitude de Deus não é uma nova revelação para ele, pois ele diz: “Não foi isso que eu disse?” Parece que ele esperava que, se ele não pregasse, o povo de Nínive não se arrependeria e então seria destruído. Mas Deus o fez entregar a mensagem para que eles se arrependessem e ele pudesse perdoá-los. A reclamação de Jonas é: “O Senhor é muito bom, muito amoroso e muito perdoador.” Observe, como Deus é retratado no Antigo Testamento em relação a uma violenta nação pagã, a Assíria.

Jonas e Oséias são livros proféticos que funcionam como referências para a leitura de todas as passagens de julgamento do Antigo Testamento. Deus não está no negócio do julgamento, mas no negócio do perdão. No entanto, ele não pode perdoar aqueles que não se arrependem. Então, ele envia profetas para alertar as pessoas sobre o julgamento que inevitavelmente virá, sua esperança é que as pessoas se arrependam e ele não tenha que executar o julgamento. Quando seus profetas são mortos e rejeitados, ele frequentemente envia outros profetas. Pode levar décadas ou mesmo centenas de anos antes que ele chegue ao ponto de enviar o julgamento, mesmo que não goste de fazê-lo. E mesmo assim ele frequentemente envia com o julgamento uma promessa de restauração. Todo bom pai sabe que, no final, que deve punir um filho que errou, mas nenhum pai gosta de fazer isso. Muitas pessoas isolam os textos bíblicos que falam do julgamento e esquecem de mostrar a longanimidade de Deus. Por exemplo, Deus permitiu que seu povo fosse escravo no Egito por 400 anos porque a medida do pecado dos amorreus não havia se completado (Gn 15:16), isso significa dizer que Deus deu aos amorreus 400 anos para que se arrependessem, no entanto, eles não se arrependeram. Então, Deus usou os israelitas para executarem o juízo divino sobre os povos de Canaã e ordenou a destruição deles, mas isso só ocorreu 400 anos depois que Deus tinha falado a Abraão.

Em segundo lugar, há julgamento no Novo Testamento. O texto bíblico do NT não é um texto apenas de “paz e amor”. As palavras juiz e julgamento aparecem 108 vezes no Novo Testamento. Outro fator digno de nota é que Jesus foi quem mais alertou sobre o julgamento divino. Disse Jesus:

Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti, pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que todo o teu corpo seja lançado no inferno. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que todo o teu corpo seja lançado no inferno.

Mateus 5.29,30

Foi Cristo quem proferiu as advertências registradas em Mateus 7:13-29 e 24:45-25:46. Na verdade, Jesus fala sobre julgamento mais do que qualquer outra pessoa no Novo Testamento, especialmente quando destacamos que o Apocalipse é “a Revelação de Jesus Cristo”, ou seja, uma mensagem direta de Jesus.

Existem vários tipos de julgamento no Novo Testamento:

  1. O autojulgamento (Jo 9:39; 12:47-49)
  2. O julgamento de Deus (Jo 8:50)
  3. O julgamento dos indivíduos (Atos 12:23)
  4. O julgamento final (Jo 5:22, 27).

Existem declarações condenando certas práticas que impedirão as pessoas de herdar o Reino de Deus (1 Co 6:9-10; Gl 5:19-21), além de imagens elaboradas de cenas de julgamento (Ap 20:11-15). A questão é que todos esses textos envolvem o julgamento e na maioria deles Jesus está envolvido diretamente. Dessa forma, Jesus é realmente como seu Pai, o Deus do Antigo e do Novo Testamento.

O Novo Testamento prega graça e amor, mas graça e amor podem ser rejeitados. O Novo Testamento também prega o julgamento final. Todos, de acordo com o Novo Testamento, são dignos do julgamento final, mas Deus agora está oferecendo graça para aqueles que se arrependem e creem no seu Filho. No entanto, se as pessoas recusarem essa graça, haverá um destino terrível esperando por elas. Assim, torna-se evidente o quão semelhante ao Antigo Testamento é o Novo Testamento. No Antigo Testamento, Deus enviou os profetas com advertências solenes de julgamento, também revelações do coração de Deus, que já estava pronto para receber pessoas arrependidas. No Novo Testamento, Deus envia apóstolos e profetas pregando o Evangelho, chamando as pessoas ao arrependimento à luz do julgamento vindouro de Deus. A este respeito, os dois Testamentos estão em completa unidade.

Em último lugar, há uma diferença entre os Testamentos em sua descrição do julgamento. No Antigo Testamento, o julgamento normalmente acontece dentro da história. Quando Israel peca, não é dito a eles que irão para o inferno quando forem ressuscitados dos mortos, mas que eles serão punidos pelos midianitas ou assírios. Portanto, há muitos julgamentos no Antigo Testamento. Em Juízes, os cananeus, moabitas, midianitas, amonitas e filisteus são usados ​​para punir Israel. Mais tarde, são os arameus, egípcios, assírios e babilônios. Em outras palavras, Israel “evolui”, deixando de ser julgado por povos locais para ser julgado pelo uso de grandes impérios. Ainda assim, em cada caso, o julgamento acontece dentro da história.  

Por causa dessa diferença, o julgamento do Antigo Testamento geralmente não fala sobre cenas escatológicas como o lago de fogo e a dissolução dos céus e da terra ou a queda de estrelas ou sobre cadeias eternas. Em vez disso, apresenta imagens vívidas de eventos terríveis que as pessoas que viviam na época conheciam muito bem, como fome, peste, exércitos de saqueadores e coisas do gênero.

Relacionado a essas descrições está o fato de que no Antigo Testamento a ideia de uma vida após a morte foi apenas parcialmente revelada e mesmo essa revelação vem no final do período do Antigo Testamento. Na maioria das vezes, as pessoas pensavam na morte como descer ao mundo das sombras do Sheol, onde não havia louvor. O que esperavam era morrer em idade avançada com um bom nome, tendo visto os seus filhos e netos, que continuariam com o seu nome. Portanto, os julgamentos no Antigo Testamento são aqueles que falam a tais esperanças: advertência de famílias inteiras sendo exterminadas ou de pessoas morrendo quando ainda são jovens.

No período do Novo Testamento, Deus revelou muito mais sobre a vida futura. Portanto, os julgamentos de que se fala são os julgamentos relacionados ao fim da história e à ressurreição dos mortos: vida eterna ou ser lançado no lago de fogo, ver todo o trabalho ser queimado ou receber a coroa da vida. Tudo isso acontece além da história, quando Cristo retorna e, portanto, quando a história como a conhecemos chega ao fim.

Então, o Antigo Testamento revela um Deus de julgamento e o Novo Testamento um Deus de amor? De maneira alguma. Ambos os Testamentos revelam um Deus de amor que também é um Deus de justiça. Deus oferece aos homens e mulheres seu amor e perdão, exortando-os a arrependerem-se para escapar dos terríveis e eternos julgamentos do fim da história. Portanto, observe o que o apóstolo Paulo deixou registrado aos romanos:

Considera, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a benignidade de Deus, se permaneceres na sua benignidade; de outra maneira, também tu serás cortado.

Romanos 11.22

O Deus da Bíblia é o mesmo nos dois Testamentos, mas qual aspecto de seu caráter você quer desfrutar? Da sua bondade ou da sua severidade? A única maneira de escapar da severidade é crer em Cristo e nele permanecer até o fim.

REFERÊNCIAS

KAISER, W. C., DAVIDS, P. H.; BRUCE, F. F.; BRAUCH, M. T. Hard sayings of the Bible. Downers Grove, IL: InterVarsity, 1996.