Uma das passagens mais difíceis da Bíblia é a que está registrada em 1 Pedro 3.19 e 20, principalmente a expressão “no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão”. Vamos analisar um pouco esse texto:
Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água.
1 Pedro 3.18.20
Os versículos 19 e 20 foram usados como pretexto para doutrinas antibíblicas como o purgatório e a salvação universal. No entanto, os cristãos protestantes costumam apresentar duas interpretações possíveis. Segundo a primeira interpretação, enquanto o corpo de Jesus permaneceu no sepulcro durante três dias, seu espírito desceu ao ᾅδης Hades, que representa o mundo invisível dos mortos, para proclamar aos mortos sua vitória e autoridade sobre todas as coisas. Esse local no Novo Testamento vem do termo grego, ᾅδης Hades, enquanto que no Antigo Testamento vem do termo hebraico שאול Sheol. Um texto bíblico que ilustra bem esse local é a passagem do Rico e Lázaro, contida no evangelho de Lucas. Nesse texto, fica evidente que o Hades ou Sheol é um local com três compartimentos, sendo eles, o lugar de tormento, o abismo e o seio de Abraão. Observe a ilustração e analise o texto de Lucas 16.22-26:
Figura 1 – Sheol ou Hades
A palavra hebraica שאול Sheol aparece 65 vezes no Antigo Testamento, significando “o lugar invisível dos mortos” ou “habitação dos mortos” (Gn 37.35; 42.38; 44.29, 31; Nm 16.30, 33; Dt 32.22; 1Sm 2.6; 2 Sm 22.6; 1Rs 2.6, 9; Jó 7.9; 11.8; 14.13, 16; 21.13; 24.19; 26.6; Sl 6.5; 9.17; 16.10; 18.5; 30.3; 31.17; 49.14, 15; 55.15; 86.13; 88.3; 89.48; 116.3; 139.8; 141.7; Pv 1.12; 5.5; 7.27; 9.18; 15.11,24; 23.14; 27.20; 30.16; Ec 9.10; Ct 8.6; Is 5.14; 7.11; 14.9,11,15; 28.15, 18; 38.10, 18; 57.9; Ez 31.15, 16, 17; 32.21, 27; Os 13.14; Am 9.2; Jn 2.2; Hc 2.5).
A palavra grega ᾅδης Hades aparece 10 vezes no Novo Testamento, sem trazer, uma vez sequer, o sentido de sepultura. Sempre com o significado de “o lugar invisível dos mortos” ou “habitação dos mortos” (Mt 11.23; 16.18; Lc 10.15; 16.23; At 2.27, 31; 1Co 15.55; Ap 1.18; 6.8; 20.13, 14).
A palavra inferno vem do latim infernus, que significa “lugar inferior”. Foi utilizada por Jerônimo, na Vulgata Latina, para traduzir do hebraico a palavra Sheol no Antigo Testamento, e do grego as palavras:
- Geenna,
- Hades;
- Tartaroo;
- Abyssos.
De forma proposital, uma seita muito conhecida dos brasileiros por fazer o seu proselitismo de porta em porta, traduziu todas as palavras Hades e Sheol como sepultura, uma vez que eles negam a existência do inferno. No entanto, a Bíblia usa palavras específicas para referenciar o local onde o corpo é depositado (túmulo, sepultura, sepulcro, tumba). As palavras hebraicas קֶ֫בֶר qěḇěr (Gn 23.4, 6, 9, 20; 49.30; 50.13; 2Sm 3.32; 19.37; Jó 3.22; 5.26; Sl. 5.9; Is 22.16; 53:9; Ez 32.25, etc.) e קְבוּרָה qeḇûrāh (Gn 35.20; 47.30; Dt. 34.6; 1Sm 10.2; 2Rs 9.28; 21.26; 23.30; 2Cr 26.23; Ec 6.3; Is 14.20; Jr 22.19 e Ez 32.23, 24) e no Novo Testamento as palavras gregas, Μνεμειον mnemeion (Mt 23.29; 27.52ss; Mc 5.2ss; 6.29, etc) e Μνεμα mnema (Mc 5.3; Lc 8.27; 23.53; 24.1, etc).
De forma geral, podemos dizer que não é totalmente correto traduzir Sheol ou Hades como inferno, uma vez que elas representam o mundo espiritual onde ficam os mortos, onde ficavam os ímpios e os crentes, lembrando que esse ambiente tinha três divisões. Nesse sentido, Jesus quando morreu, foi ao Hades, mas na área boa, conhecida como o “seio de Abraão”, ele não foi literalmente ao inferno (lugar de tormento). No entanto, por não existir uma palavra 100% adequada em português para representar a totalidade do seu significado é admissível traduzir Hades e Sheol como inferno. Entretanto, traduzir Hades e Sheol como sepultura é negar totalmente a existência do mundo espiritual.
Sendo assim, se faz necessário fazer algumas considerações importantes sobre o Sheol e sobre o Hades:
- Essas palavras só aparecem no singular, nunca no plural. Portanto, nunca poderia ser usada como sepulcros;
- Não há qualquer vínculo com o corpo;
- O hebraico e o grego tem palavras próprias para sepultura;
- Representam uma linguagem específica
- Não há nenhuma referência na Bíblia referente à alma que desce ao qěḇěr (sepulcro) e a nenhum cadáver que vai ao Sheol;
- O cenário da morte de Jesus mostra que
- Seu corpo foi ao qěḇěr (Is 53.9), no grego Mnemeion (Jo 19.41-42) e sua alma foi ao Sheol (Sl 16.10), no grego Hades (At 2.27);
- As pessoas eram donas de qěḇěr (sepulcros) mas ninguém era dono de Sheol ou Hades;
A palavra pregar, ἐκήρυξεν (ekeryxen) usada nesse texto, não significa “evangelizar”, mas simplesmente informar ou anunciar. Jesus não desceu ao mundo dos mortos para evangelizar pecadores que lá estavam, mas para anunciar a consumação da Sua perfeita vitória sobre o pecado e sobre a morte. Não há consenso entre os comentaristas quanto aos espíritos em prisão, se são cristãos, incrédulos ou ambos. No entanto, em geral se concorda que o Senhor Jesus não pregou o Evangelho aos espíritos, pois seria necessário aceitar, então, a doutrina da segunda chance, que não é ensinada em nenhum lugar na Bíblia. Nessa proposta, 1 Pedro 3.19-20 é associado a Efésios 4.9, que descreve o Senhor descendo “às regiões inferiores da terra”. A passagem é considerada, ainda, prova adicional de que Cristo foi ao Hades e anunciou sua vitória no Calvário. As palavras do Credo Apostólico, “desceu ao lugar dos mortos”, também são citadas para fortalecer essa interpretação.
Para os defensores da segunda interpretação, Pedro está descrevendo o que aconteceu no tempo de Noé. O espírito de Cristo pregou por intermédio de Noé à geração incrédula antes do dilúvio. Naquele tempo, não eram espíritos, mas, sim, homens e mulheres que rejeitaram as advertências de Noé e foram destruídos pelo dilúvio. Agora, as pessoas do tempo de Noé que morreram afogadas nas águas do dilúvio, são espíritos em prisão no Hades, no lugar de tormento. Embora reconheçamos as duas interpretações gerais como admissíveis no meio evangélico. É mais comum a nós, pentecostais, assumirmos a primeira interpretação.
REFERÊNCIAS
MACDONALD, W. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. São Paulo: Mundo Cristão, 2011.